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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Uma história do Hamas


A indignação de parte a parte é importante. E compreensível. Mas há vários sinais ocorrendo em Gaza que boa parte da cobertura jornalística não está pegando.

Por que, por exemplo, o Hizbolá não está atacando Israel do Líbano?
Por que o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, que por muito menos já ameaçou Israel das piores formas, anda tão ameno em seus discursos das últimas semanas? (Diz que o Hamas está ficando mais forte e não passa disso.)

Precisamos compreender o Hamas: de onde vem, e o que é hoje.

Israel informa que está atacando o Hamas, em Gaza, neste momento. As vítimas, no entanto, são palestinos. Morrem às centenas. Alguns – muitos – não têm qualquer ligação com o Hamas. Mas como declaradamente o ataque é ao Hamas, aqueles que tomam as dores das vítimas defendem o Hamas; e aqueles cujo coração bate por Israel sugerem que quase todos os mortos são do grupo.

O Hamas, no entanto, não representa todos os palestinos. A se contar as pesquisas eleitorais de dezembro, em 2009 46% dos eleitores em Gaza planejavam votar no Fatah e apenas 32% no Hamas. Levando-se em conta também os eleitores na Cisjordânia, a outra parte da futura Palestina, a derrota eleitoral do Hamas seria de acachapantes 42 a 28%.

O que é, então, o Hamas?
É o grupo que, durante muito tempo, recebeu dinheiro da Arábia Saudita. É o grupo que durante anos foi parcialmente financiado por Saddam Hussein. São aqueles que se sustentam, hoje, com o dinheiro do Irã.
Mas, antes de tudo isso, é o grupo financiado de nascença por Israel. E esta que segue é sua história.



O Hamas

Em árabe, a palavra quer dizer zelo e serve de acrônimo para a sigla Movimento de Resistência Islâmica. Seu berço ideológico é um grupo árabe dos anos 40, fundado no Egito, chamado Irmandade Muçulmana. Durante sua existência, a Irmandade misturou o discurso nacionalista com o religioso, em oposição ao nacionalismo laico que daria origem aos partidos Baath na Síria, Iraque e outros países dali. A Irmandade atentou contra a vida do presidente egípcio Gamal Abdul I-Nasser e assassinou o sucessor, Anwar Sadat.

O Hamas nasceu em 1988, nos territórios ocupados por Israel, como braço armado da Irmandade pouco antes da primeira Intifada. Até aquela Intifada, havia sido financiado por Israel. Estimulado por Israel. A crença era de que, incentivando um movimento religioso, seria construída uma forte oposição à Organização pela Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat. A crença dos líderes políticos em Israel é que, se estivessem ocupados com religião, os palestinos não lutariam. Era outro mundo e outro tempo. Antes do acordo de Oslo, antes de Yitzhak Rabin e Arafat apertarem suas mãos nos jardins da Casa Branca. Muito antes de o Fatah, nascido da OLP, ser o aliado com quem a paz parece mais plausível.

Em 2003, antes de chegar ao governo, o orçamento anual do Hamas girava entre 40 a 70 milhões de dólares, angariados por caridades no ocidente entre árabes no exílio e governos vários no Golfo Pérsico, principalmente a Arábia Saudita. Investiam quase tudo em creches, escolas, hospitais e mesquitas caras à enorme parcela pobre da população. Sua segunda atividade eram os serviços de inteligência, uma espécie de polícia secreta que ainda hoje persegue palestinos acusados de cooperar com o governo israelense e blasfemar contra o Coorão. Bate, tortura, às vezes mata.



O braço terrorista, embora mais famoso, sempre recebeu pouco dinheiro. É barato.
A base que elegeu o Hamas para o governo palestino, em 2006, veio por intermédio de fisiologismo político – aquele que oferece à população os serviços que o Estado não garante – e a boa e velha exploração do ódio ao inimigo externo. O muito citado e pouco lido documento que serve de doutrina ao grupo, assinado em 18 de agosto de 1988, não prega apenas que haverá ‘um dia do Julgamento Final no qual muçulmanos matarão todos os judeus, que se esconderão atrás de pedras e árvores, e as pedras e árvores acusarão ó, muçulmano, cá atrás está um judeu’. Baseado numa ideologia confusa, racista e com uma boa queda por teorias conspiratórias, o mesmo documento enxerga no Sionismo o responsável por vários dos males do mundo. Dentre tais males, os ideólogos do Hamas citam a Revolução Francesa, a Revolução Russa de 1917, o Rotary Club e a Maçonaria.

Segundo o Council of Foreign Relations, de Nova York, o Hamas está por trás de pelo menos 350 atentados terroristas distintos desde 1993 que custaram a vida de mais de 500 pessoas, dentre eles árabes. Em 1996, quando o Partido Trabalhista no poder israelense ainda tentava consolidar um acordo de paz como o Fatah, uma série de atentados do Hamas o fizeram parecer fraco. O resultado foi a eleição do candidato da direita do Likud, Benjamin Netanyahu. Foi também após outra série de atentados do Hamas, entre 2001 e 2003, que Israel decidiu construir o muro que separa o país dos territórios ocupados na Cisjordânia. Esta mesma segunda série de atentados tiveram por outra conseqüência a adoção israelense da política de assassinatos seletivos. A vítima mais famosa, em 2004, foi o líder supremo do Hamas, o sheik Ahmed Yassin, um homem paralítico e cego, inspirador de inúmeras mortes.

Seu assassinato apenas fortaleceu o Hamas.
Israel costuma ser eficiente no campo de batalha, mas de todo inepta no planejamento político das batalhas que decide lutar. No longo prazo, à direita e à esquerda, são não apenas incompetentes em planejamento estratégico como seu governo reage com freqüência sem pensar nas conseqüências de seus atos. Esta, no entanto, é uma história do Hamas. E não é possível contar a história do Hamas sem seu próprio rastro de sangue.



Em 2005, o Hamas decidiu disputar as eleições da Autoridade Palestina e, em janeiro de 2006, as venceu. Não foi apenas o sucesso de seu fisiologismo concentrado nas regiões extremamente pobres de Gaza. Até lá, a Autoridade Palestina vinha sendo governada pelo Fatah que demonstrava indecisão, incompetência gerencial e uma profunda tendência à corrupção. Causou surpresa a eleição do Hamas – mas não devia. À direita, alguns comentaristas sugeriram que ali estava uma prova de que muçulmanos não eram capazes de lidar com democracia. Escolheriam sempre os radicais. Talvez a lição fosse outra: perante um mau governo, o povo que pode escolher o substitui pela oposição.

No governo, Ismail Haniyeh, líder do Hamas, descobriu que política era uma arte mais difícil do que esperava. Costurar uma coligação com o Fatah para montar seu gabinete foi extremamente difícil. Por um ano, governou de forma hesitante, com um partido bloqueando o outro politicamente enquanto Israel seguia com a política agressiva de muros e cercas. Em dezembro de 2006, policiais ligados ao Fatah, na Cisjordânia, abriram fogo contra uma passeata do Hamas. A luta armada entre palestinos se estendeu até fevereiro, quando um cessar-fogo foi acordado por intermédio saudita. Não durou: em maio, pelo menos 50 palestinos morreram em Gaza nos choques entre militantes de um grupo e do outro. Enquanto lutava contra seus rivais internos, o Hamas disparava foguetes contra Israel. Os israelenses retrucaram. Sob fogo, o Hamas cercou em 10 de junho o prédio administrativo do Fatah em Gaza, a guerra civil estourou, Israel fechou as fronteiras. No final, Gaza estava tomada pelo Hamas e o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, destituiu Haniyeh do cargo de premiê.

Segundo a constituição provisória da AP, o presidente tem de fato este poder quando um gabinete não parece conseguir governar – e as circunstâncias, uma tentativa de golpe, pareciam sugerir tal necessidade. O presidente também pode, como fez Abbas na seqüência, indicar um novo primeiro ministro. Mas ele não pode impor este nome ao Conselho Legislativo da Palestina. O Parlamento deve aprová-lo. Enquanto um novo nome não passa, o premiê anterior segue interino. Abbas ignorou a Constituição porque não conseguiria a aprovação no parlamento rachado. É nesta situação, dividida, que a Palestina se encontra hoje.

Desde 2001, às vezes com mais freqüência, às vezes com menos, o Hamas vem lançando foguetes Qassam contra Israel. Morreram 15 pessoas até hoje por conta deles. São poucas vítimas porque Israel aponta radares para detectá-los e sirenes altas alertam aqueles na região onde vão cair. É cotidiano tenso que, se não mata pelo fogo, tira pelo estresse uma boa década de vida. Os Qassam são foguetes domésticos fabricados com tubos de aço e explosivos em geral à base de fertilizantes.

Segundo a Human Rights Watch, talvez a organização mais isenta na avaliação de conflitos internacionais, o histórico do Hamas é de esconder armamento em localidades civis. A HRW também acusa o grupo de disparar contra o exército de Israel do meio de agrupamentos civis, atraindo fogo para vítimas indefesas. O que a ong não confirma é a acusação israelense de que o Hamas usa crianças como escudo. Acontece que Gaza é densamente povoada e crianças estão por toda parte. Sob artilharia pesada, sua morte é inevitável. Israel, de inocente, não tem nada. Tem histórico de ter matado homens feridos sob sua guarda e de disparar contra agrupamentos mistos de civis e militantes sem piscar. O ataque à escola da ONU, que deixou pelo menos 40 mortos, é só o mais gritante deste momento.

Neste período, o Hamas vem sendo financiado cada vez mais pelo governo xiita do Irã. A ligação provoca dúvidas em seus vizinhos árabes: sauditas e egípcios não têm qualquer amor pelo grupo atualmente. Arábia Saudita e Irã disputam há anos, com suas vertentes distintas do Islã, influência nas ruas do Oriente Médio. O presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad investe particularmente no ódio generalizado a Israel. Em 2006, sustentou financeiramente o Hizbolá, no Líbano. A guerra custou, ao Irã, um bilhão de dólares, postos nas mãos do sheik Hassan Nasrallah, líder do Hizbolá, que indenizou quem perdeu casa ou familiares. Após a ofensiva israelense, o Hizbolá estava mais forte e saiu mais querido pelos libaneses.

E aí encontra-se o maior problema do Hamas no conflito atual: no Irã, o desemprego atualmente é de 35% entre aqueles com menos de 30 anos. A crise econômica está forte no país, que aguarda ansioso alguma ajuda de FMI e Banco Mundial. Com a queda do preço do petróleo, os fundos são parcos. Ahmadinejad pode vencer eleitoralmente por conta da invasão de Gaza, mas não tem dinheiro e para continuar governando precisará de empréstimos internacionais. O que faz do Líbano em 2006 diferente de Gaza em 2009 é o preço do barril de petróleo.

Mas isto não quer dizer que a causa esteja perdida para o Hamas. Se, após a ofensiva, ele continuar de pé, já terá vencido. David terá resistido a Golias. E, mesmo que não fosse representativo dos anseios palestinos apenas um mês atrás, o governo de Israel terá, ao custo de muito sangue, fortalecido politicamente dois de seus piores inimigos.


Por: Pedro Doria

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