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domingo, 13 de fevereiro de 2011

Salvaguardas nucleares e o caso especial de Brasil e Argentina


Introdução

O modelo de protocolo adicional (PA) proposto pela AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) para adesão voluntária de seus Estados-Membros muda o objeto e amplia o escopo das salvaguardas abrangentes em vigor.

A abordagem do PA é muito mais intrusiva, dando margem a interpretações que podem ferir tanto o princípio da soberania nacional, como o princípio da propriedade industrial. A eventual adesão de um país ao PA, decisão de cunho eminentemente político, deveria, portanto, ser feita no contexto de um processo de negociação que, do ponto de vista técnico, garantisse a impossibilidade do uso indevido de tais interpretações.

O processo histórico que levou Brasil e Argentina a firmarem e ratificarem o TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear) pode aportar ensinamentos importantes sobre possíveis rumos de negociação.

O que são salvaguardas nucleares

Salvaguardas são atividades realizadas pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para verificar se um Estado estaria violando seus compromissos internacionais de não desenvolver programas de armas nucleares.

O Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) e outros tratados internacionais contra a proliferação de armas nucleares, como o Tratado de Proibição de Armas Nucleares na América Latina (Tratado de Tlatelolco) delegam à AIEA estas atividades de inspeção.

Hoje, as salvaguardas da AIEA sobre atividades e materiais nucleares são aplicadas a mais de 140 Estados-Membros, no âmbito dos diversos acordos internacionais de não-proliferação em vigor. Note-se, entretanto, que a AIEA não aplica salvaguardas aos seus Estados-Membros que não aderiram ao TNP (Israel, Índia e Paquistão). A Coreia do Norte é um caso à parte porque, tendo aderido inicialmente ao TNP, o denunciou, passando a desenvolver declaradamente um programa de armas nucleares.

Dentro do regime mundial de não-proliferação nuclear, o sistema de salvaguardas da AIEA funciona como uma medida de confiança, um mecanismo de alerta antecipado, e um gatilho que aciona outras respostas da comunidade internacional, em especial resoluções do Conselho de Segurança da ONU, se e quando surgir uma suposta necessidade.

Durante a última década, as salvaguardas da AIEA foram reforçadas em áreas-chave. As medidas visam aumentar a probabilidade de detectar um programa clandestino de armas nucleares e para construir a confiança de que os Estados estão cumprindo os seus compromissos internacionais.

Esse reforço foi estabelecido pelo Modelo de Protocolo Adicional, estabelecido em reação à identificação de atividades e materiais nucleares não declarados pelo Iraque em decorrências às inspeções que se sucederam à sua derrota na 1a Guerra do Golfo.

O que são salvaguardas abrangentes

A AIEA aplica três tipos de acordos de salvaguardas:

1. Salvaguardas abrangentes (modelo INFCIRC-153), aplicável a todos os países não-nuclearmente armados que aderiram ao TNP;

2. Salvaguardas parciais (modelo INFCIRC-66), aplicável aos países que não aderiram ao TNP e que possuem armas nucleares (Índia, Paquistão, Israel);

3. Acordos de oferta voluntária, aplicáveis aos cinco países nuclearmente armados reconhecidos pelo TNP (EUA, Rússia, Grã-Bretanha, França e China).

Todos os países ao assinarem o TNP têm que assinar com a AIEA um Acordo de salvaguardas abrangentes, ou seja, que inclua todas as instalações e materiais nucleares no país.

Esse Acordo segue o modelo estabelecido pela AIEA denominado INFCIRC-153, conhecido como o “Acordo do TNP”. Esse acordo pode receber da AIEA outro número; como no caso da EURATOM, Agência Nuclear da Comunidade Européia (INFCIRC-193) e no caso do Brasil e Argentina (INFCIRC-435).

Aplicação de Salvaguardas no Brasil

O INFCIRC-435, acordo associado ao tratado dito “Quadripartite”, assinado pela AIEA, Agência Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle (ABACC), Brasil e Argentina, entrou em vigor em 1994, quando os dois países não haviam firmado nem ratificado o TNP. Ele constitui um acordo de salvaguardas abrangente.

Note-se que o formato original do Tratado, firmado em 1991, era “Tripartite” (ABACC, Brasil e Argentina, sem AIEA).

Mais tarde, respectivamente em 1997 e 1999, Argentina e Brasil ratificaram o TNP. Como já tinham com a AIEA um acordo de salvaguardas abrangentes, o INFCIRC 435, não foi necessário assinar outro acordo, sendo este usado para os fins de atendimento às obrigações do TNP.

O acordo INFCIRC 435 associado ao Tratado Quadripartite, substituiu os antigos acordos firmados pelo Brasil segundo o modelo INFCIRC-66 da AIEA (salvaguardas parciais, de aplicação a instalações específicas) usados para importação de sistemas, como Angra 1 e as instalações contratadas dentro do escopo do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha (Angra 2, Fábrica de Elementos Combustíveis, dentre outras).

Como são aplicadas as salvaguardas

As salvaguardas são baseadas em avaliações da exatidão e integridade da contabilidade e controle do material nuclear e das atividades nucleares declaradas pelo Estado-Membro. As medidas de controle incluem inspeções in loco e visitas de acompanhamento e avaliação.

Basicamente, dois conjuntos de medidas são aplicados, em conformidade com os termos dos acordos de salvaguardas abrangentes em vigor para cada Estado-Membro.

Um conjunto diz respeito à verificação dos relatórios sobre materiais e atividades nucleares declarados pelo Estado-Membro. Estas medidas, autorizadas pelos acordos de salvaguardas abrangentes firmados em decorrência do TNP, em grande parte são baseadas na contabilidade e controle dos materiais nucleares, complementadas por técnicas de contenção e vigilância, tais como selos invioláveis e câmeras nas instalações.

Outro conjunto acrescenta medidas destinadas a reforçar as capacidades de inspeção da AIEA. Elas incluem aquelas incorporadas pelo Modelo de um Protocolo Adicional, que é um documento legal complementar os acordos de salvaguardas. Estas medidas visam verificar não só o desvio não-declarado de material nuclear, mas também dar garantias quanto à ausência de material e atividades nucleares não declaradas em um Estado-Membro.

Inspeções e visitas de salvaguardas

A AIEA realiza diferentes tipos de inspeções e visitas ao abrigo dos acordos de salvaguardas.

Inspeções ad hoc são normalmente feitas para verificar um relatório inicial de material nuclear do Estado-Membro ou relatórios sobre suas eventuais alterações, e verificar o material nuclear envolvido em transferências internacionais.


Inspeções de rotina
são as mais utilizadas, podendo ser realizadas de acordo com um cronograma definido; estas inspeções de rotina normalmente não se realizam sem aviso prévio, mas podem ocorrer com comunicação de curto prazo. O direito de a Agência efetuar inspeções de rotina sob acordos de salvaguardas abrangentes limita-se a locais dentro de uma instalação nuclear, ou outros locais que contenham material nuclear, ou nos quais algum fluxo de material nuclear é esperado (pontos estratégicos).


Inspeções especiais
podem ser realizadas em circunstâncias específicas previstas pelos acordos de salvaguardas abrangentes. A AIEA pode levar a cabo inspeções especiais se considerar que as informações disponibilizadas pelo Estado-Membro em causa, incluindo as explicações e informações obtidas através das inspeções de rotina, não são adequadas para que a Agência cumpra suas responsabilidades definidas no âmbito do acordo de salvaguardas em vigor.


Visitas de salvaguardas
podem ser feitas em instalações declaradas durante todo seu ciclo de vida para verificar as informações sobre o projeto em causa. Por exemplo, essas visitas podem ser realizadas durante a construção, para determinar a integridade das informações de projeto declaradas, durante operações de rotina das instalações e na sequência de atividades de manutenção, para confirmar que nenhuma modificação foi feita, que permitiria atividades não declaradas terem lugar, e durante o descomissionamento da instalação, para confirmar que o equipamento sensível foi inutilizado.

As atividades que os inspetores da AIEA realizam durante e em conexão com inspeções ou visitas às instalações podem incluir a auditoria de contabilidade do material nuclear e os registros de funcionamento da instalação, comparando estes registros com os relatórios de contabilidade do Estado-Membro apresentados à Agência, a verificação do inventário de material nuclear e de suas alterações, com base em amostras ambientais e aplicação de medidas de confinamento e vigilância, por exemplo, a aplicação de selos e a instalação de equipamentos de vigilância.

O que são protocolos adicionais

O Protocolo Adicional é um documento legal que concede à AIEA autoridade de inspeção complementar àquela prevista nos acordos de salvaguardas subjacentes. De caráter voluntário, ele é, por princípio, aplicável aos três tipos de acordos de salvaguardas.

Seu objetivo principal é permitir que os serviços de inspeção da AIEA ofereçam garantias não só sobre os materiais e atividades declarados pelos Estados-Membros, mas também sobre possíveis materiais e atividades não declarados. Ele concede à AIEA direitos ampliados de acesso a informações e locais.

O Protocolo Adicional recebeu da AIEA a designação de INFCIRC-540, e ele tem que necessariamente ser um acordo adicional a um acordo de salvaguardas abrangente previamente existente. Não é possível um país assinar somente o PA sem ter assinado antes um acordo compreensivo.

Uma visão geral das medidas de salvaguardas previstas pelos acordos de salvaguardas abrangentes e sua ampliação pelos protocolos adicionais são apresentadas a seguir.

Medidas no âmbito dos acordos de salvaguardas abrangentes

- Prestação de informações pelo Estado-membro sobre novas instalações e alterações em instalações existentes, logo que suas autoridades decidirem construir, autorizar a construção ou modificar uma instalação; a Agência tem continuamente o direito de verificar as informações de projeto ao longo do ciclo de vida da instalação, incluindo seu descomissionamento.

- Coleta de amostras ambientais nas instalações e em locais onde os inspetores têm acesso durante as inspeções, com análise de amostra no laboratório de referência da AIEA e/ou em laboratórios certificados nos Estados-Membros e verificação de informações de projeto das instalações.

- Avaliação aprimorada de informações provenientes de declarações do Estado-membro, das atividades de verificação da Agência e de uma vasta gama de fontes abertas.

- Controle autônomo e remoto de movimentos de materiais nucleares declarados em instalações e a transmissão dos dados relevantes de salvaguardas autenticados e criptografados à Agência.

- Prestação de formação avançada para inspetores e pessoal de salvaguardas da Agência e de pessoal do Estado-Membro responsável pela aplicação de salvaguardas.

- Uma cooperação mais estreita entre a AIEA e os sistemas nacionais (e regionais) para contabilização e controle de materiais nucleares nos Estados-Membros.

- Utilização expandida de inspeções não anunciadas dentro do regime de inspeção de rotina programadas.

- Comunicação voluntária pelo Estado-membro das importações e exportações de material nuclear e a exportação de equipamentos e materiais não-nucleares especificados (novos componentes deste relatório foram incorporados no modelo de protocolo adicional).


Medidas no âmbito dos protocolos adicionais


- Fornecimento de informações pelo Estado-Membro e acesso dos inspetores da Agência a todas as etapas do ciclo de combustível nuclear, incluindo minas de urânio, fabricação de combustível e instalações de enriquecimento e locais de armazenagem de resíduos nucleares, bem como para qualquer outro local onde os materiais nucleares estão ou poderão estar presentes (os acordos de salvaguardas abrangentes não incluem as minas).

- Estado-Membro fornece informações e permite à Agência acesso em curto prazo a todos os edifícios em um sítio nuclear (os acordos de salvaguardas abrangentes prevêem acesso apenas às instalações declaradas em um sítio).

- O protocolo prevê que os inspetores da AIEA tenham acesso "complementar" para garantir a ausência de materiais nucleares não declarados ou para resolver questões ou inconsistências nas informações que um Estado Membro forneceu sobre suas atividades nucleares. O acesso complementar, entretanto, não é algo que possa ser aplicado de maneira sistemática e/ou indiscriminada, mas somente nos casos em que houver dúvidas razoáveis por parte da Agência.

- A antecedência na maioria dos casos é de pelo menos 24 horas. O aviso prévio é menor, pelo menos duas horas, para acesso em qualquer lugar em um sítio quando solicitado em conjunto com a verificação de informações de projeto ou em inspeções ad hoc e de rotina nesse sítio.

- As atividades realizadas durante o acesso complementar podem incluir exame dos registros, observação visual, coleta de amostras ambientais, utilização de dispositivos de detecção e medição da radiação e a aplicação de selos e outros dispositivos de identificação e indicação de adulterações.

- Coleta de amostras ambientais em locais fora dos locais declarados quando considerada necessária pela Agência (os acordos de salvaguardas abrangentes prevêem coletas apenas nas instalações declaradas).

- A coleta de amostras ambientais em área mais vasta exige aprovação da Junta de Governadores da AIEA e consultas ao Estado-Membro em questão.

- Direito de os inspetores fazerem uso dos sistemas de comunicações estabelecidos internacionalmente, incluindo sistemas de satélites e outras formas de telecomunicação.

- Aceitação pelo Estado-Membro da designação de inspetores pela Agência e emissão de vistos de entrada múltiplos, válidos para pelo menos um ano, para os inspetores (os acordos de salvaguardas abrangentes preveem vistos específicos para cada entrada, válidos somente pelo período previsto da inspeção ou visita).

- Prestação de informações pelo Estado-Membro e estabelecimento de mecanismos de verificação pela Agência sobre atividades de pesquisa e desenvolvimento relacionadas com o ciclo do combustível nuclear declaradas pelo Estado-Membro (os acordos de salvaguardas abrangentes não preveem declaração de atividades de P&D, a não ser que haja manipulação de “quantidades significativas” de “materiais físseis especiais”).

- Prestação de informações sobre a fabricação e exportação de tecnologias nucleares sensíveis e mecanismos de verificação da Agência em locais de fabricação e nos locais de importação declarados pelo Estado-Membro (os acordos de salvaguardas abrangentes não preveem declaração de locais de fabricação nem de importação de tecnologias sensíveis, a não ser que haja manipulação de “quantidades significativas” de “materiais físseis especiais”).


Adesão ao Modelo de Protocolo Adicional


Conforme pode ser visto, o modelo de protocolo adicional proposto pela AIEA para adesão voluntária de seus Estados-Membros muda o objeto e amplia o escopo das salvaguardas abrangentes.

Estas são focadas na contabilidade e controle dos materiais nucleares contidos em instalações em que haja manipulação de “quantidades significativas” de “materiais físseis especiais” e cuja existência é declarada pelo próprio país.

O PA, por sua vez, estende estas salvaguardas à mineração e beneficiamento de urânio, para instalações que não teriam sido declaradas pelo Estado-Membro, mas que supostamente manipulem materiais nucleares, e para instalações em que não ocorre manipulação destes materiais, mas que são consideradas como de interesse para a garantia de não-proliferação, como laboratórios de pesquisa e fábricas de componentes e equipamentos.

Evidentemente, a abordagem do PA é muito mais intrusiva, dando margem a interpretações de livre acesso de inspetores da AIEA a qualquer ponto do território nacional. Ainda que não plenamente explícitas no texto do protocolo, muitas vezes vago e genérico, a aplicação de tal interpretação fere tanto o princípio da soberania nacional (acesso arbitrário a qualquer parte do território de um país), como o princípio da propriedade industrial (acesso arbitrário a informações tecnológicas protegidas).

Portanto, a eventual adesão de um país ao PA, decisão de cunho eminentemente político, só seria aceitável se fosse feita no contexto de um processo de negociação que, do ponto de vista técnico, garantisse a impossibilidade do uso indevido de tais interpretações. Isto poderia ser feito através de acordos subsidiários, prática corrente na negociação da aplicação de acordos de salvaguardas.

Essa é a prática que deveria ter sido adotada pelos 139 países e uma agência regional de salvaguardas (EURATOM) que a ele aderiram até dezembro de 2010.

O Caso de Brasil e Argentina

O processo histórico que levou Brasil e Argentina a firmarem e ratificarem o TNP pode aportar ensinamentos importantes sobre potenciais rumos de negociação que levem em conta os interesses nacionais, não se limitando a adesão pura e simples a um sistema pré-definido internacionalmente.

Inicialmente os dois países não aderiram ao Tratado (1968). Bilateralmente os dois países instituíram um sistema de salvaguardas regional (1991). Em seguida, firmaram um acordo de salvaguardas abrangentes com a AIEA (1994). Somente depois de estabelecido este sistema regional, reconhecido pela AIEA e do qual ela é parte ativa, os países aderiram ao TNP (Argentina em 1998, Brasil em 1999).

De um ponto de vista jurídico, Brasil e Argentina não poderiam firmar de forma independente protocolos adicionais. Isto porque o PA é adicional a um acordo de salvaguardas abrangente em vigor. Nem Brasil nem Argentina possuem tal tipo de acordo individualmente.

O acordo de salvaguardas abrangente em vigor nos dois países (INFCIRC-453) é conjunto e com interveniência da ABACC. Logo, um protocolo adicional só poderia ser implementado pelos dois países em comum acordo e com interveniência da ABACC.

A alternativa a isto, ou seja, se um dos dois países decidir aderir ao PA individualmente, seria denunciar o Tratado Quadripartite e a INFCIRC-435 que lhe é associada e firmar um novo acordo de salvaguardas abrangente individual com a AIEA para depois aderir ao PA.

Evidentemente tal alternativa implicaria na ruína do regime de salvaguardas regional implantado pelos dois países que é hoje um modelo de sucesso reconhecido internacionalmente e que tem sido citado como procedimento que poderia ser aplicado em outras regiões do mundo.

Uma demonstração clara da importância do regime de salvaguardas regional adotado pelo Brasil e Argentina vem das negociações em curso para revisão das diretrizes do Nuclear Suppliers Group (NSG).

Cabe ressaltar que o NSG não é um órgão da AIEA. Logo, suas diretrizes não têm o respaldo direto nos tratados internacionais de salvaguardas em vigor. O NSG é constituído em bases voluntárias e suas Diretrizes não são legalmente obrigatórias. Cabe a cada Estado membro, em sua exclusiva soberania nacional, decidir se autoriza ou não exportações de itens controlados.

Há cinco anos, vêm ocorrendo negociações no NSG para a revisão das Diretrizes relativas ao controle de transferências de tecnologias de enriquecimento de urânio e reprocessamento de combustível irradiado. Desde o princípio, o Brasil empenhou-se em evitar que a adoção de PA viesse a ser considerado critério imprescindível para a transferência dessas tecnologias.

Note-se que o Brasil não tem, a princípio, qualquer interesse em transferências de tecnologias de enriquecimento e reprocessamento, nem como supridor nem como recipiendário. No que tange ao enriquecimento, já desenvolveu tecnologia própria e não considera a possibilidade de comercializá-la. No que tange ao reprocessamento, dentro do horizonte de planejamento de longo prazo não existe previsões de implantação desta tecnologia no País.

Após consistente esforço diplomático, o Brasil conseguiu que no texto de base das negociações fossem estabelecidos dois critérios objetivos alternativos para que um país se qualifique a receber tais tecnologias: (a) ter um PA em vigor ou (b) fazer parte de um acordo regional para aplicação de salvaguardas aprovado pela Junta de Governadores da AIEA antes da adoção do modelo de Protocolo Adicional (1997), condição que é atendida apenas pelo Brasil e pela Argentina (por meio do Acordo Quadripartite) e pelos Estados-Parte da agência nuclear europeia (EURATOM).

Isto configura um importante êxito da diplomacia brasileira. Evidência objetiva deste êxito pode ser encontrada nas críticas que a ele são feitas pelo “establishment” da não-proliferação internacional.

É fato que a adoção de um PA como “critério imprescindível” para a transferência dessas tecnologias não afeta diretamente de forma significativa os interesses do Brasil no âmbito restrito do NSG. Entretanto, entende-se que a adoção de um PA elevada a um “critério imprescindível”, ainda que em âmbito restrito ao NSG, seria um precedente que viola a firme posição do Brasil no sentido do caráter voluntário da adoção do PA em quaisquer âmbitos.

Conclusões

A Estratégia Nacional de Defesa (END), aprovada pelo Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008, estabelece que o Brasil “mão aderirá a acréscimos ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares destinados a ampliar as restrições do Tratado sem que as potências nucleares tenham avançado na premissa central do Tratado: seu próprio desarmamento nuclear”.

A condicionante para acréscimos ao TNP, que seria avanços reais no desarmamento das potências nucleares, certamente não foi atendida nem o será no curto prazo.

A diplomacia brasileira adota uma postura firme no sentido do caráter voluntário da adoção do PA no âmbito do TNP e do Tratado Quadripartite, bem como do Acordo de Salvaguardas Abrangentes que a eles é associado (INFCIRC-435).

A adoção de um acordo regional para aplicação de salvaguardas aprovado pela Junta de Governadores da AIEA antes da adoção do modelo de PA como alternativa, conforme texto base atual da revisão das diretrizes do NSG, é uma postura coerente com a END e com o princípio da voluntariedade na adoção de PA por Brasil e Argentina.

Caso a condicionante da END venha a ser atendida no médio ou longo prazo, as negociações para a adesão de Brasil e Argentina ao PA devem ser feitas no âmbito da INFCIRC-435, ou seja, de forma conjunta entre Brasil, Argentina, ABACC e AIEA.

Essas negociações, quando e se vierem a ser estabelecidas, deverão incluir acordos subsidiários que impeçam interpretações do Modelo de PA (INFCIRC-540) que possam vir a ferir os princípios da soberania e propriedade industrial nacional.

Neste caso, o Protocolo Adicional ao Acordo de Salvaguardas Parciais firmado pelos EUA com a AIEA (INFCIRC/288/Add.1, de 9 de março de 2009), com as devidas adaptações devido ao diferente status desse país no TNP, pode ser uma referência interessante.
 
Por: Leonam dos Santos Guimarães
Fonte: Opera Mundi

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