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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A AÇÃO CONVENIENTE DAS ONGS


A sociologia tem muito a dizer nos debates sobre a globalização. Porque, se as análises eruditas são prolixas em diagnósticos promocionais ou críticos, elas se mantêm muito discretas sobre as práticas de especialistas e contra-especialistas que são atores essenciais desse processo.

O estudo da governança mundial representa um mercado valorizado e vantajoso para os produtores do Direito, da Economia ou de Ciência Política. Para além das suas divergências científicas ou ideológicas, esses produtores têm em comum o fato de encarar seriamente os desafios da globalização. Fazendo como se ela fosse uma realidade – a promover, a combater ou a controlar –, mobilizam recursos sociais e institucionais que contribuem para fazê-la existir, como aposta política, mas igualmente como canteiro em torno do qual se empenham os especialistas. Enquanto jogam a bola de um fórum a outro, os protagonistas têm todo interesse em não minar esse novo espaço de poder.

Mercado elitista e protegido
O mercado da avaliação internacional é elitista e protegido. Para acessá-lo, é necessário dispor de competências culturais e lingüísticas. Antes de serem reforçadas e legitimadas por cursos escolares internacionais muito dispendiosos, as tendências ao internacional são privilégio dos herdeiros de linhagens familiares cosmopolitas. Incluindo no meio certas críticas da globalização, que se inscrevem em redes internacionais muitas vezes marcadas pela influência norte-americana. Porque as grandes organizações não-governamentais (ONGs) multinacionais recrutam jovens profissionais entre os melhores diplomados dos campi do Ivy League, nos Estados Unidos. Ora, o acesso a essas escolas de elite – cujo custo pode exceder 40 mil dólares por ano (98.480 reais) – é reservado essencialmente aos herdeiros de um establishment liberal, que – “noblesse oblige” – sempre cultivou certa forma de idealismo e universalismo.

Graças a tal recrutamento, certas organizações militantes, certas ONGs, dispõem de um viveiro constantemente renovado de competências. Tão motivadas quanto reconhecidas, elas se tornam parcerias críticas das multinacionais e das nações. Essas colaborações, mal remuneradas, mas ricas de experiência, não excluem de modo algum carreiras posteriores nas instituições de Estado, os grandes gabinetes de análises, até mesmo as multinacionais. Os profissionais do militantismo reencontrarão ali seus antigos condiscípulos, e poderão mesmo superá-los. As aprendizagens militantes desse tipo permitem, com efeito, adquirir algumas das chaves essenciais para a hora da "globalização": uma caderneta de endereços, mas também uma habilidade política que combina a visibilidade mediática e a discrição do lobby, sem esquecer uma reputação bem útil no caso de reconversão posterior como "empresário moral".

Assim, Benjamin Heineman, formado em Harvard, Oxford e Yale, começa o seu percurso profissional dedicando seus três primeiros anos a um gabinete jurídico de interesse público financiado pela fundação Ford. Isso o conduz a importantes funções na administração Carter, antes de se tornar (onde ficou por dezessete anos) diretor jurídico da General Electric, principal multinacional do planeta. Atualmente é vice-presidente. Exemplar, este perfil atribui a ele uma forte legitimidade no mundo profissional e patronal, ao qual ele se engaja em prol da deontologia e maior responsabilidade social.

Herança colonial

As características da nova geração dos ativistas da globalização valem, principalmente, para seus predecessores. A facilidade cultural e lingüística, freqüentemente cultivada desde mais a jovem idade em estabelecimentos escolares elitistas, como as escolas bilíngües (particularmente nos países em desenvolvimento), serve de passaporte para o acesso à formação universitária estrangeira, cujo custo, assumido em grande parte pelas famílias, reforça o efeito de seleção social.

Essa formação no estrangeiro das elites nacionais dos países dependentes constitui uma herança do modelo colonial trazido pelo novo imperialismo. Os Estados Unidos impuseram sua hegemonia por meio de investimentos educativos, que remodelaram os cursos universitários dos futuros responsáveis governamentais sobre economia e ciência política. Os grandes campi privados do Ivy League servem assim de lugar preferencial à constituição das novas elites, tanto nacionais como internacionais. Compensando a maior concorrência no ensino superior nacional, ligada ao afluxo de estudantes, as formações remotas e dispendiosas permitiram as diferentes burguesias de Estado privilegiar os seus herdeiros, reservando-lhes, de fato, o acesso aos diplomas estrangeiros prestigiosos. Essa estratégia, comum às elites de numerosos países, contribuiu para "a unificação do campo mundial da formação dos líderes".

Por meio da denúncia das velhas ideologias coloniais em benefício de novos universais – o desenvolvimento, o mercado, o Estado de Direito –, a potência hegemônica americana deu um golpe duplo. Desqualificou as redes de influência que asseguravam a perenidade do modelo neocolonial europeu, reorientando ao mesmo tempo para os seus próprios campi os circuitos internacionais de formação das elites periféricas. Por conseqüência, a fuga dos cérebros para os mercados profissionais mais remuneradores.




Jogo duplo
Os dois espaços do nacional e do internacional são perfeitamente encaixados nas estratégias de reprodução das elites. No mercado da avaliação internacional, os operadores dominantes são os que podem mobilizar títulos e diplomas autenticados por seus Estados de origem. No inverso, um capital internacional de competências e de relações representa uma vantagem não negligenciável nas estratégias nacionais de poder. Ser um antigo aluno da ENA [Escola Nacional de Administração] ou politécnico não prejudica certamente uma carreira posterior nas instituições internacionais; ser diplomado em Harvard não impede de forma alguma de se tornar ministro em Paris. Um pequeno grupo de privilegiados pode simultaneamente fazer valer a sua notoriedade nacional para ser ouvido na cena internacional e investir no internacional para reforçar as suas posições no campo do poder nacional. Neste último caso, basta explicar que eles poderão, assim, melhor promover os interesses do país na concorrência mundial.

Tais estratégias de jogo duplo valem, principalmente, para as grandes instituições filantrópicas privadas – como as fundações Ford, Rockefeller, Soros – que se encontram doravante na vanguarda da globalização "humanizada". Ao mesmo tempo que financiavam o desenvolvimento internacional das grandes ONGs que militam para os direitos da pessoa ou para a defesa do meio ambiente, contribuíam para a propagação internacional dos campi que produzem e que difundem a nova ortodoxia liberal: mais da metade dos presidentes de bancos centrais são diplomados em economia geralmente nas grandes universidades americanas; mais de um terço são antigos membros do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou do Banco Mundial. A globalização valoriza, assim, um espaço da "governança" internacional cujas instituições e práticas se inspiram no modelo norte-americano.

Paradoxalmente, as divisões no império fazem a sua diferença. A astúcia da razão imperial é que ela exporta suas lutas internas: mesmo a contestação do modelo americano se inspira nas análises (multiculturalismo, mestiçagem) e nos métodos de luta (invocação da "sociedade civil" e recurso à mídia) correntes nos Estados Unidos. Para neutralizar os que justificam suas políticas conservadoras apoiando-se nas "internacionais do establishment" (FMI, Banco Mundial etc.), seus adversários extraem de dentro dessa armadura modelos alternativos que circulam através da rede das ONGs. Assim, tanto no centro como na periferia da nova ordem mundial as lutas internas alimentam e se alimentam da dinâmica da importação cultural. Concorrentes tanto quanto complementares nos seus efeitos hegemônicos.
Imposição de prioridades

Graças ao recrutamento nos campi das elites, ao apoio financeiro das fundações filantrópicas e aos numerosos intermediários que dispõem (no campo universitário mas também o das instituições internacionais), as ONGs baseadas em Washington podem elaborar mais facilmente estratégias e modelos que correspondem aos novos desafios políticos ou científicos. Elas estão muito preocupadas em difundir essas análises, pois esperam, em troca, uma mobilização da opinião internacional para aumentar a sua influência em Washington. Para as organizações militantes dos países dominados o problema é diferente. A fraqueza dos próprios recursos as leva a recorrer ao mercado internacional da filantropia... que lhes impõe, em troca, suas palavras de ordem e os seus modelos, senão os seus modos.

Na sua tese sobre “O mercado internacional da solidariedade”, Benjamin Buclet detalha toda a ambigüidade da "parceria" entre as grandes ONGs internacionais e as pequenas estruturas que intervêm no âmbito local. A fim de financiar sua ação militante, estas últimas devem se inscrever numa lógica de projeto, negociado com financiadores de fundos internacionais. A concorrência entre projetos assegura a influência desses gestores financeiros, tanto sobre a definição "das populações-alvo" como sobre os objetivos e os critérios de avaliações. Além disso, as prioridades desses gestores são substituídas pelas das grandes ONGs, bem introduzidas na cena internacional – o que lhes permite preencher, de fato, um papel de holding no que diz respeito às suas redes de pequenas ONGs locais, que não dispõem dos recursos sociais que permitem acesso direto aos financiamentos internacionais. Esse dispositivo cria um curto-circuito entre os governos nacionais e os notáveis locais, mas permite à "sociedade civil internacional" assegurar a divulgação dos seus valores e das suas prioridades, definir quais são as necessidades de desenvolvimento ou as expectativas de democracia.
Emigração de militantes

Denunciando os adeptos do monetarismo que impuseram os seus discípulos – e a sua disciplina – na chefia das instituições financeiras nacionais dos países em desenvolvimento, os agentes do "mercado mundial da solidariedade" prolongam em âmbito local a empresa de reestruturação política nos Estados da periferia. Quando eles se esforçam em construir sua credibilidade sobre o assunto, os responsáveis dessas pequenas ONGs não escapam à lógica do clientelismo. Porta-vozes – mas também "padrinhos" – de populações muito dependentes, eles são levados a concorrer com os notáveis que dispunham até então de um quase monopólio sobre o poder político local.

Às vezes, os lucros obtidos pelos militantes na cena internacional são bem pagos no plano local porque, incentivados a utilizar os métodos de ação estimados pelos países democráticos e as ONGs (reuniões pacíficas, exposição dos líderes mais carismáticos do movimento), eles se defrontam com poderes que não recuam na frente da violência. O que corresponde melhor aos canhões do protesto ocidental, mediatização incluída, não é necessariamente o que impressiona mais nos regimes cuja potência das forças de repressão e o equilíbrio dos poderes não são nem os de Estocolmo nem os de Washington.

Confrontados com uma luta tão incerta quanto desigual, alguns desses militantes podem estar tentados a fugir para as grandes cenas da globalização, onde, graças aos recursos postos à sua disposição, têm a impressão que os seus engajamentos são não apenas menos arriscados, mas também mais eficazes. Assim, entre os militantes chilenos que foram os pioneiros dos direitos da pessoa sob a ditadura de Pinochet, vários, entre os melhores, emigraram para se encontrar na primeira fila da cena internacional. Alguns o fizeram porque eram perseguidos ou expulsos, como o professor de direito Jose Zalaquett, que se juntou à Anistia Internacional em 1976, antes de assumir três anos mais tarde sua presidência.

Mas, para a maior parte, sua partida coincide com o declínio das ONGs chilenas, após a vitória da coalizão democrática. Porque a nova equipe governamental recorre a eles para beneficiar sua legitimidade: Roberto Garreton, responsável pelo comitê jurídico de defesa das vítimas da ditadura, criado no seio do arcebispado, é, por exemplo, nomeado embaixador dos direitos do homem, antes de prosseguir sua carreira na ONU como relator especial dos direitos humanos, especialmente no Zaire. Em termos mais gerais, quando o Chile pára de ser destaque nas grandes mídias, os financiamentos das ONGs se esgotam, ainda que as camadas mais desfavorecidas da população chilena continuam a ser vítimas de violências policiais. Para prosseguir com seu compromisso, certos militantes escolhem então emigrar, como José Vivenco, que foi para Washington, onde fica um dos principais porta-vozes da America's Watch.

Inspiração americana

A internacionalização das lutas nacionais pelas quais se constrói o embrião de uma sociedade civil mundial contribui, por conseguinte, para impor como universais estratégias um savoir faire inspirado pela dinâmica da política americana. A vitória de Ronald Reagan já tinha produzido efeitos paradoxais, principalmente favorecendo a universalização dos "direitos do homem". Para construir uma espécie de reação contra o embargo da direita às instituições de Estado, a fração reformista, freqüentemente democrata, do Foreign Policy Establishment se apoiou nos recursos de instituições privadas que ela tinha fundado e cujo controle conservava. Preocupada em incentivar o desenvolvimento de uma "sociedade civil" capaz de desempenhar um papel de contra-poder, invocava contra os falcões os quais se cercava Ronald Reagan, uma moral universal dos direitos da pessoa.

As fundações filantrópicas desempenharam um papel de reguladores da mobilização cívica. Na área de meio ambiente, por exemplo, fazendo cintilar suas subvenções e mobilizando suas redes científicas, a Fundação Ford acelerou a reconversão de movimentos contestadores ao redor de temáticas "responsáveis". Por exemplo, fez pressão sobre os responsáveis pelo Environment Defense Fund (FED), de modo que abandonassem uma estratégia de confrontação que se apoiava sobr
e a tribuna judicial para mobilizar a opinião: "Sue the bastards" (Levem os canalhas à justiça), de acordo com a fórmula favorita do inventor desta diligência.

Capitalismo filantrópico

Alegando que a responsabilidade civil como financiadores de fundos estava comprometida, os financeiros da Fundação Ford impuseram uma pré-seleção dos processos por grandes notáveis da advocacia. Simultaneamente, a fundação incentivou a negociação dos ecologistas com os industriais. Primeiro, financiando os trabalhos de uma equipe de economistas da Electricité de France, que demonstraram que a proteção do meio ambiente não representava apenas um custo, mas uma fonte de lucros potenciais para as empresas.

Em seguida, fazendo pressão sobre os múltiplos pequenos grupos de ativistas para que se agrupassem em estruturas unificadas ao redor de estados maiores profissionais, capazes de negociar com base numa avaliação científica reconhecida. As grandes ONGs que doravante passaram a dominar a cena internacional da defesa do meio ambiente – modernizado sob a denominação de "mercado do desenvolvimento sustentável" – são o instrumento desta contra-ofensiva inscrita na grande tradição reformista do capitalismo filantrópico americano, inventado pelos "barões ladrões".

Pierre Bourdieu o recordava: "A referência ao universal é a arma por excelência". O imperialismo sabe avançar sob o estandarte dos direitos do homem e da (boa) governança. Brincando de parceria com as ONGs, as multinacionais não têm mais que se apresentar como as campeãs do "desenvolvimento (de um capitalismo) sustentável".

Fonte: Le Monde Diplomatique
Por: Yves Dezalay e Bryant Garth
   

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