A China em plena crise global se transformou no primeiro sócio comercial da África, provocando surpresa e desassossego entre as antigas potências coloniais européias, como a França, Inglaterra e Portugal. Mas também inquietou os Estados Unidos que, durante o mandato do presidente Barack Obama, fizeram esforços importantes para melhorar a imagem do país neste Continente. Estatísticas recentes indicam que durante 2008 o comércio entre a China e a África quadruplicou o nível existente, ao atingir US$ 107 bilhões. Assim, superou a cifra de US$ 104 bilhões que corresponde ao intercâmbio afro-americano. As economias mais poderosas do Ocidente consideram isto como um efeito secundário do crescimento comercial chinês indesejável e temem pelo futuro do abastecimento de petróelo. Estaríamos próximos ao atual monopólio energético americano e europeu na África: Angola, Sudão e a Nigéria já se transformaram em fontes estratégicas de abastecimento de petróleo da China. Essa nação asiática já transferiru para a Guiné Equatorial ou Uganda, parte importante de suas empresas estatais multinacionais, obtendo grande apoio político.
A fim de neutralizar os efeitos deste cenário, Obama pronunciou em Ghana seu primeiro discurso dirigido à África e, recentemente, a secretária de Estado, Hillary Clinton, executou uma muito bem publicitada série de viagens que incluiu Angola, Congo, Nigéria, África do Sul, Libéria, Quênia e Cabo Verde. A mensagem da ministra norte-americana é a mesma que o seu presidente pronunciou em determinado momento; fortalecer a democracia, aplicando os princípios do "bom governo".
O ALARME DA ONU
De maneira paralela às gestões políticas norte-americanas, a Organização das Nações Unidas deu a voz de alarme sobre o ressurgimento de novas fomes em massa no chamado "Chifre da África". A entidade cita os crescentes preços dos alimentos, a seca e a crise ecológica, a recessão mundial, os conflitos bélicos nacionais e regionais, e a corrupção generalizada dos regimes políticos. No momento, dezessete milhões de pessoas padecem fome extrema e, segundo indicações da própria ONU, países como a Somália e o Quênia requerem ajuda com urgência. No primeiro, em grande parte devido a sua sangrenta guerra civil, umas três milhões, setecentas mil pessoas precisam de auxílio imediato. Uma de cada cinco crianças apresenta desnutrição extrema e carece dos serviços médicos necessários. No Quênia, a corrupção e a crise ecológica condenaram quatro milhões à fome extrema.
A fome também é agravada por um fato que parece um grande tabu: a África alimenta as nações ricas com seus próprios produtos agrários, segundo denúncias do International Food Policy Research Institute, de Washington. Desde 2006 de quinze a vinte milhões de hectares de terras cultiváveis africanas teriam sido arrendadas aos países desenvolvidos, principalmente asiáticos; tristemente célebres foram as incursões agrárias da empresa coreana Daewoo em Madagascar
UMA NOVA MENSAGEM DE WASHINGTON
O presidente Obama decidiu visitar África subsaariana logo depois que terminou a Reunião de Cúpula dos oito países mais industrializados do mundo (G-8), efetuada na Itália, em julho, indicando simbolicamente que com este Continente também é possível e necessário fazer negócios globais.
Gana foi o país eleito para materializar sua nova política africana, porque exibe dezesseis anos seguidos de poder civil, poder que generosamente é identificado com o exercício da democracia. Representa também uma das economias que com maior estabilidade implementaram as reformas neoliberais na região. No passado, também teve um papel estratégico na defesa dos interesses americanos na África, durante os governos de Bill Clinton e George W. Bush. Em Gana, de maneira similar ao formulado em seu lendário discurso do Cairo, Obama reafirmou sua decisão de abandonar as pretensões de sua nação de criar um mundo a sua imagem e semelhança, pondo fim à exportação da democracia "made in EUA". Para o mandatário, as eleições livres não constituem por si mesmas uma autêntica democracia, pois também é necessário construir instituições democráticas e confiáveis. O problema da África é o da carência de eficiência governamental e institucional e para isso, é preciso recuperar o poder transformador dos movimentos da independência, implementando a tarefa de uma revolução democrática. Segundo o governante americano a África deve acabar com o "vitimismo" histórico com o qual justifica suas crises e decadências: "É fácil apontar e culpar os outros ou o colonialismo pelos seus conflitos, mas o Ocidente não é responsável pela destruição econômica de Zimbabue ou das guerras nas quais alistam crianças como combatentes".
A série de viagens de Hillary Clinton foi menos emotiva, mas mais complexa e realista, procurando apoio para as ressurgentes democracias africanas, maior colaboração na luta contra o islamismo radical e o fim da pirataria internacional que ameaça o Oceano Índico.
Embora essas mensagens tenham sido recebidas com simpatias por vastos setores civis, muitos supõem que não são suficientes para alterar uma balança geopolítica que, por enquanto, favorece os investimentos chineses. Num Continente onde a corrupção faz parte institucional do sistema político, a nova linha estratégica proclamada pelo atual presidente chinês Hu Jintao dos " Quatro Não" : não ao hegemonismo, não à política de força, não à carreira armamentista e não a uma política de blocos , é considerada como uma garantia de não intervenção nos assuntos internos. Por outro lado, a política chinesa não questiona a legitimidade dos regimes, como o fazem a Europa e os Estados Unidos, considerados na África como interessados nada mais que em instrumentalizar estrategicamente esses temas. Por tudo isso, é difícil que superar, pelo menos a curto prazo, a fascinação que cria um mercantilismo chinês carente de condicionamentos políticos.
Peter Smith, redator da Africa Confidential, recordava recentemente que mais de 70% das obras públicas na área subsaariana são outorgadas às empresas chinesas ou indianas, e que o governo chinês jamais suspendeu ou abandonou um projeto, porque as autoridades locais não combateram de modo suficiente a corrupção ou debilitaram os direitos humanos ou transgrediram as normas democráticas.
DEMOCRACIA NA ÁFRICA?
A realidade política africana dista notavelmente não só das esperanças americanas, senão também das descrições que dela se formulam. Quando Gana é um país cujo exemplo é destacado por Obama ou seus antecessores, normalmente se esquece que a fortaleza de suas instituições se fundamenta em privilégios que seriam recusados em qualquer modelo democrático. Quando o ex- presidente John Kufuor se retirou, por exemplo, recebeu seis automóveis, que podem ser renovados a cada quatro anos, com seus respectivos motoristas e duas casas. Além disso poderá fazer uso de uma pensão de US$ 400 mil anuais e de férias no estrangeiro anualmente. O fundamento desta atraente compensação é evitar que os presidentes se aferrem ao poder ou tentem reformas constitucionais para prolongar seu mandato.
O panorama político regional é mais do que sombrio. No Marrocos e em Suazilândia existem, de fato, monarquias absolutas e neles o princípio de livre eleição está limitado pela vontade do monarca. O falecimento recente do presidente do Gabão, Omar Bongo, acabou com o mais prolongado Governo (42 anos), e ele nunca foi votado. Neste triste célebre privilégio foi substituído pelo "rei dos reis" líbio, o coronel Muammar el Gaddaffi, presidente da União Africana. Numa situação similar, embora com experiência eleitoral, encontra-se seu vizinho da Argélia, Adbelaziz Bouteflica, recentemente reeleito.
Paul Biya, da República dos Camarões, Robert Mugabe, em Zimbabue, e Isaías Afewerki, da Eritréia demonstraram fidedignamente sua vontade de permanecer de maneira indefinida no poder. No Congo-Brazzaville, Denis Sassou-Nguesso conseguiu obter uma duvidosa maioria num simulacro eleitoral recente. Em Zâmbia e na Nigéria a alternância na chefatura do Estado se pratica sistematicamente, mas na maioria dos casos os novos presidentes sempre são do mesmo partido. No Quênia, o presidente Mwai Kigali, que pertenceu ao Governo anterior, chegou novamente ao poder em 2007 como representante de um partido de oposição. E ele exerce o poder em coabitação com o primeiro-ministro Raila Odinga, que foi seu contendor numas eleições que custaram a vida de aproximadamente mil pessoas.
Mas o Continente africano também conhece o indesejado fenômeno político das dinastias presidenciais. No Senegal, Abdolulaye Wade regulamentou seu retiro político em favor de seu filho Karim Wade e no Gabão o recentemente falecido Omar Bongo foi substituído por seu filho Ali-Ben Bongo nas eleições presidenciais. O presidencialismo é herdado em múltiplas ocasiões de pais a filhos, ou então as posições dos herdeiros são favorecidas pelos círculos nepotistas que cercam o poder do Estado. Um exemplo clássico é a República Democrática do Congo, onde o magnicídio de Laurent-Désiré Kabila deu curso à presidência de seu filho Joseph, num episódio que pressagia uma prolongada permanência no poder. Uma situação similar ocorreu no Togo, depois do desaparecimiento do viciado pelo poder Gnassingbé Eyadema.
Em geral, as Constituições africanas permitem a permanência na presidência durante dois períodos, mas recentemente proliferaram as tentativas de executar reformas constitucionais que facilitem uma estadia ainda mais prologada: Yoweri Museveni, em Uganda, e Mamadou Tnadja, de Níger constituem os exemplos clássicos.
Uma situação mais dramática ainda é a representada pelos países que possuem regimes militares ou de caudilhismo autocrático que excluem por definição qualquer participação cidadã ou de democracia parlamentar. Nesta direção pode-se considerar casos de ditaduras militares a de Laurent Gbagbo, que na Costa do Marfim postergou reiteradamente as eleições gerais. A Mauritânia, desde sua independência da França em 1960, exibe uma longa lista de golpes armados e seu atual ditador, o general Mohamed Ould Abdelaziz, exerce uma presidência "legitimada politicamente" a partir de uma consulta eleitoral, orquestrada pelo próprio regime: ele derrocou Sidi Ould Abdellahi, primeiro presidente eleito democraticamente (em 2007) e até hoje único político em condições de conciliar a fratura étnico- social que separa a população de origem árabe da população africana negra. Atualmente, o ditador neutralizou todo conflito a partir da violenta coerção da população negra.
Na Etiópia, os reduzidos fragmentos de sociedade civil depositaram suas esperanças no primeiro-ministro Meles Zenawi, esperando que ele cumpra, depois de dezoito anos, seus anúncios de que abandonará o poder. E no Mali, o presidente Amadou Toumani Touré renunciou às reformas constitucionais, depois de receber a promessa de que desfrutará de uma aposentadoria em 2012. Na Somalia, Sheikh Ahmed governa num país sem estado, sendo incapaz de exercer soberania sobre seu próprio território, e seus portos constituem uma versão moderna da Ilha da Tartaruga, pois neles a pirataria estabelece suas bases de operações, gozando de total impunidade.
Por: Alex Fernández, Analista internacional, Universidade de Ámsterdã
Fonte: revista Mensaje
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